Interpelação Pag. Principal >> Interpelação

 

INTERVENÇÃO ANTES DA ORDEM DO DIA

 

 

Após o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) a maioria dos cidadãos tinha a legítima expectativa que a RAEM, governada pelas suas gentes e com um alto grau de autonomia, viesse a conhecer desenvolvimento sustentado, tanto a nível económico como social. No sentido de concretizar este grande desejo dos cidadãos, este hemiciclo aprovou em 2001 a concessão legal de 3 licenças de jogo. O Governo, contudo, rapidamente ultrapassou este limite, criando, através de interpretação “criativa” das normas legais, 3 licenças adicionais. O súbito aparecimento simultâneo de mais cinco licenças para exploração do jogo levou quase imediatamente à exploração desproporcional dos preciosos e escassos recursos naturais da RAEM, nomeadamente os seus terrenos, transformando Macau numa cidade de cimento e betão armado, com consequências desastrosas para o meio ambiente e qualidade de vida da maioria dos cidadãos. Esta factura tem custos muito elevados e provavelmente será paga por muitas mais gerações.

 

Este permanente e desequilibrado desenvolvimento económico continua a criar inúmeros problemas sociais, nomeadamente ao nível das infra-estruturas, transportes, circulação de peões, ausência de espaços verdes, cuidados de saúde primários e de urgência, habitação, pensões ilegais e a deterioração do tráfico aéreo. E embora se assista a um afluxo cada vez maior de pessoas, comércio e dinheiro, a verdade é que, de uma maneira geral, continua a aumentar o fosso entre os ricos e os pobres, principalmente devido à contínua subida da taxa de inflação e das rendas de casa. Os principais bens essenciais de consumo diário são cada vez mais caros. A qualidade de vida da maioria das famílias está cada vez pior. As famílias da classe média sentem-se abandonadas pelo Governo.

 

O exemplo mais flagrante deste abandono do Governo encontra-se nos trabalhadores da função pública no activo, nos aposentados e nos pensionistas, que vinham recebendo mil patacas por mês como subsídio de residência, muitos deles há dezenas de anos.

 

Agora, subitamente e sem nada que o justificasse, estes benefícios cessaram a partir de Junho do corrente ano, alegadamente por todos eles residirem em casas sociais que são propriedade do Instituto de Habitação ou da Obra Social da PSP.

 

É este tipo de decisão por parte de alguns serviços públicos que cria enormes focos de insatisfação e rancor junto dos cidadãos, e que contribuem para o contínuo descrédito do Governo.

 

Desde o estabelecimento da RAEM, o Governo tem sistematicamente ignorado a gestão, organização e planificação ordenada da cidade, “fechando os olhos” à contínua destruição do meio ambiente, ao mesmo tempo que foi permitindo a degradação da qualidade do ar e do saneamento básico, o aumento galopante da poluição sonora e luminosa numa cidade que pretende estar viva durante vinte e quatro horas, mas que o quer fazer à custa de cada vez mais e maiores sacrifícios para os seus residentes. E nem mesmo o aumento dos valores dos cheques oferecidos pelo Governo aos cidadãos como suposta contrapartida por tudo isto servem para atenuar o desgosto e tristeza dos cidadãos, que percebem que há coisas que o dinheiro não compra.

 

E o resultado final de tudo que acabei de referir, é que, de uma maneira geral, a sociedade da RAEM está cada vez mais fracturada, e a capacidade de operar do Governo está cada vez mais minada pela desconfiança, falta de credibilidade, e incompetência de vários dos seus altos responsáveis, que se vão mantendo no poder à custa da prática e fomento da adulação, da fuga e delegação permanente das suas responsabilidades, e, em muitos casos, à custa de nada decidirem para minimizarem as suas hipóteses de erro.

 

Mas o domínio em que a maneira cada vez mais arbitrária como se exerce o poder na RAEM é mais notório é, sem margem para dúvidas, no domínio dos recursos humanos.

 

As violações ao princípio universais “Mesmo Salário para o Mesmo Trabalho” são uma constante desde o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM). Todos os dias, muitos serviços públicos e empresas privadas cometem graves violações ao referido princípio que, embora seja universalmente reconhecido e respeitado, é sistematicamente ignorado em Macau pelas instâncias governamentais.

 

Por exemplo, no seio da administração pública é hoje possível contratar trabalhadores com recurso a vários mecanismos contratuais, desde contratos individuais de trabalho, contratos de tarefas, contrato de aquisição de serviços, contratos ao abrigo do antigo Estatuto de Pessoal do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, contratos ao abrigo do Novo Estatuto de Pessoal do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, contratos além quadro e contratos de assalariamento ao abrigo Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública, contratos individuais de trabalho regidos pela lei geral de trabalho, contratos individuais de trabalho não regidos pela lei geral de trabalho, etc.

 

Devido a esta grande variedade de contratos e à falta de regulamentação clara sobre cada um deles, muitos serviços públicos abusam desta actual anarquia de tipos de contratos e muitas vezes escolhem de uma forma arbitrária a maneira de contratar os seus trabalhadores, chegando ao cúmulo de contratar trabalhadores sem contrato individual de trabalho e cujos salários são pagos por uma entidade privada, como aconteceu recentemente no Instituto de Habitação (IH).

 

Este é o caso mais paradigmático de sistemática violação dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Os referidos trabalhadores - na sua maioria licenciados - foram explorados pelo IH durante mais de um ano, tendo sido privados de férias, assistência médica, seguro de trabalho e pagamento de horas extraordinárias, embora estivessem sujeitos à subordinação hierárquica e jurídica dum Chefe de Divisão do IH, e como tal sujeitos ao regime interno de assiduidade com direito ao respectivo cartão de identificação do IH.

 

De acordo com estes trabalhadores, a sua contratação pelo IH foi levada a cabo através de uma pessoa que tem relações privilegiadas com alguém que trabalha no IH. Durante mais de um ano, um funcionário dos recursos humanos do IH telefonava constantemente à empresa privada para relatar quanto à assiduidade destes trabalhadores, que recebiam o valor horário de MOP$45,00, pago pela empresa privada via cheque bancário. Não se sabe, contudo, quanto o IH pagou a esta empresa privada.

 

Mas, e mais escandaloso ainda, estes trabalhadores, para além de explorados, foram obrigados a deslocarem-se no final de cada mês à empresa privada que apresentou os trabalhadores ao IH, por forma a receberam o cheque bancário correspondente ao salário do mês. Várias vezes, os salários foram pagos com dois meses de atraso.

 

Após ter sido descoberto este escândalo, o IH despediu de imediato os trabalhadores sem dó nem piedade, tendo subsequentemente contratado novos trabalhadores, desperdiçando assim a valiosa experiência dos trabalhadores despedidos.

 

No entanto, e apesar da gravidade deste assunto, parece que tudo vai ser abafado e a culpa irá novamente “morrer solteira”. O assunto ficou resolvido com a substituição dos trabalhadores.

 

Tudo o que referi tem acontecido porque o Governo não regulamentou até à presente data o artigo 27º da Lei Básica, não obstante a plena eficácia das Convenções Internacionais de Trabalho nºs. 98 e 87. A acrescer a esta inércia governativa, a maioria dos trabalhadores quer na função pública quer na privada não se atreve a denunciar estes graves abusos, com medo de retaliações como o despedimento sem justa causa, não renovação dos contratos ou pressões directas e indirectas para que peçam por sua própria iniciativa a demissão dos cargos.

 

Conforme já referi inúmeras vezes, o exemplo tem que vir de cima, e não podemos esperar verdadeira evolução na RAEM enquanto for o próprio Governo a dar os piores exemplos de incompetência, ilegalidade e arbitrariedade.

 

 

O Deputado da Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau aos 19 de Julho de 2011.

 

José Pereira Coutinho

 

 

 

 

 

*
*
*
Conseguiu carregar os documentos
*
Conseguiu carregar os documentos