Intervenção do Deputado José Pereira Coutinho sobre a proposta de Lei intitulada Alteração à Lei n. º 3/2001 – Regime Eleitoral da Assembleia Legislativa da RAEM apresentado pelo Governo no Plenário do dia 9 de Agosto de 2016
1. É hoje apresentada, discutida e votada na generalidade a proposta de Lei intitulada “Alteração à Lei n.º 3/2001 – Regime Eleitoral da Assembleia Legislativa da RAEM”. A primeira nota a destacar foi a elevada rapidez após a conclusão do processo de consulta pública como a generalidade de imprensa local fez eco.
2. Esta proposta, pretende combater a corrupção eleitoral, um problema grave e recorrente na sociedade. Por isso, merece, sem dúvidas, todo o nosso apoio. Porém, há muitos problemas com esta proposta de lei. Esta proposta de lei, vai muito mais longe, adulterando o processo eleitoral genuíno e vai comprometer os direitos e liberdades fundamentais dos residentes. Com isto não podemos pactuar.
3. Nunca trocaremos umas eleições supostamente livres de corrupção por umas eleições sem as liberdades.
4. Em primeiro lugar, chamamos a atenção do Governo que esta proposta de lei está a violar a Lei Básica. E não é um ou dois artigos. Estão a ser violados uma mão cheia de artigos da nossa lei fundamental que todos nós devíamos respeitar.
Assim, perguntamos se esta proposta de lei foi sujeita a apreciação prévia? Se foi, então foi, por quem? O que diz o documento? Como se ignorou o conteúdo desrespeitador da Lei Básica? Como se ignorou o que foi aparecendo na comunicação social a denunciar estas violações? Como se esqueceu o convite que o Conselho Executivo fez a este hemiciclo “Face à insistência dos jornalistas, o porta-voz do Conselho Executivo reconheceu que as normas geram diferentes pontos de vista na sociedade, mas lembra que o diploma será ainda sujeito à discussão na AL”.
5. Desde logo, o documento de consulta, afirma com toda a clareza, pretender controlar as candidaturas eleitorais ou pelo menos os seus aspectos mais relevantes. Relembro o documento de consulta e passo a transcrever “Reforça-se o controlo do conteúdo e da modalidade da propaganda eleitoral. Através do regime de declaração, determina-se expressamente, só os candidatos ou aqueles que forem declarados como apoiantes das candidaturas pelos candidatos podem fazer propaganda eleitoral” e para que não houvesse dúvidas, afirma-se mais “Em simultâneo regulamentar também que os candidatos e seus apoiantes …. têm de declarar junto da CAEAL todo o conteúdo e meios da propaganda eleitoral, incluindo o conteúdo através dos meios de comunicação digital, para se reforçar o controlo” Repito, para se reforçar o controlo. Isto só poderia acontecer na Coreia do Norte.
E mais, para que todos ficassem bem conhecedores desta lei do controlo são acrescidas medidas de natureza sancionatória. Controla-se a liberdade eleitoral, a liberdade de propaganda, a liberdade de expressão, e coloca-se “um pau” para castigar os candidatos que não acatem as proibições e aniquila-se as suas liberdades fundamentais.
Esta situação é plenamente inaceitável numa sociedade de direito, onde o Governo não pode querer e fazer tudo por si, onde os direitos e liberdades fundamentais estado garantidos na Lei Básica. Talvez só em sociedades de ditadura se possam encontrar este tipo de normas de imposição e aniquilação das mais elementares liberdades eleitorais.
6. E volto a frisar, que este tipo de críticas e denúncias, já tinham sido feitas. Portanto, a AL há deveria saber delas. Recordo, a insistência dos jornalistas na conferência de imprensa do Conselho Executivo com o seu porta-voz a admitir por fim que há pontos de vista diversos e que de qualquer maneira a AL iria ter de analisar estas desconformidades eventuais com a Lei Básica.
Recordo também várias notícias locais. Por exemplo um destacado académico afirmou: “Se isto, vier a ser uma lei, obviamente que violará de uma forma brutal a liberdade de expressão em geral, nomeadamente a liberdade de propaganda política, a partir do momento que o Chefe do Executivo fixa a data das eleições e até duas semanas antes do acto eleitoral, ou seja, até ao início do período oficial da campanha eleitoral, ninguém poderá falar publicamente sobre as eleições.
Nem as pessoas que se vão apresentar como candidatos se podem assumir como tal, nem as pessoas que pretendem apoiar essa candidatura poderão falar em abono dessa mesma candidatura ou criticar outras, nem nós. Nem os jornalistas, nem os residentes, nem os membros das associações nem simpatizantes. Ficaremos amordaçados e não poderemos dizer nada. Isto é como uma suspensão da liberdade de expressão. E diz mais, o mesmo jurista “Isto é claro de um controlo total”. E as pessoas só poderão falar em abono ou em crítica de um candidato se se tiverem registado como apoiante. Quem não o fizer não poderá sequer dar a sua opinião. A proposta “é uma autentica lei da mordaça”. Isso mesmo, a proposta, tal como vem, é uma autêntica lei da mordaça.
Para além de exigir um controlo prévio da propaganda eleitoral e do seu conteúdo e do controlo prévio de actividades de propaganda eleitoral (artigos 75.º B, 75º C e 188º B) cria-se uma forma inédita em Macau e mesmo no mundo a inaceitável obrigação de registo prévio de apoiante de candidatura. (artigo 69.º A)
Não compete e não pode competir à administração pública, seja directamente pelo Governo seja pela CAEAL controlar o conteúdo da mensagem eleitoral, qualquer que ela possa ser, e permitir que seja um órgão do governo a aprovar ou desaprovar essa mensagem política.
Caros colegas e amigos da comunicação social, aproxima-se de todos nós, o lápis vermelho da censura política e da censura das ideias e do seu debate.
Não é razoável, sob qualquer ponto de vista, exigir que todos os apoiantes de uma candidatura tenham obrigatoriamente de se inscrever previamente. Isto é totalmente contrário à natureza de qualquer processo eleitoral onde se pretende, precisamente cativar novos apoiantes. Seja nas mensagens seja nos comícios.
Pergunto aqui, para memória futura, o que é que vai acontecer a alguém que não sendo um apoiante inscrito, mas adere posteriormente às ideias políticas de uma outra candidatura no decurso do período formal de campanha eleitoral. E se essa pessoa quiser por exemplo distribuir panfletos, envergar uma camisola com o dístico da lista, aplaudir e participar activamente em actos de campanha, como um comício?
Pergunto, aqui neste hemiciclo para memória futura, o que acontece? Será importunado pelas forças policiais ou pela CAEAL? Por estar a exercer a sua liberdade fundamental de expressão? Ou o seu direito fundamental de manifestação? O exercício das liberdades e garantias outorgadas pela Lei Básica valerão assim tão pouco? O respeito pela Lei Básica deixa de ser uma realidade?
7. E como se pode tolerar a exigência da proposta de marcações antecipadas, mas mesmo muito antecipadas de acções de campanha? Como se pode exigir que os candidatos e outras pessoas tenham de declarar previamente com 25 dias de antecedência todas as actividades de propaganda eleitoral a organizar ou em que pretendem participar, sendo sujeito uma punição se não fizer (artigos 75.º B e 188.º B)?
E se ocorrer, um facto surpreendente e de incontestável importância para a campanha eleitoral, por exemplo, um escândalo político? Não se pode improvisar uma conferência de imprensa? A tal mordaça, mantêm-se? Se, em nome da sua liberdade de expressão e do seu direito fundamental eleitoral, um candidato decidir uma actividade de propaganda eleitoral centrada nesse facto novo e importante será importunado pelas autoridades? Será impedido de o fazer? Será punido?
Tem isto, algum sentido, num contexto de uma campanha eleitoral, num sistema onde vigoram princípios e direitos fundamentais consagrados na Lei Básica? Não se pode falar num facto político relevante na campanha apenas por não haver autorização da CAEAL?
E como se pode aceitar que em caso de emergência e por força maior possa uma pessoa colectiva declarar a realização de nova actividade ou a alteração do conteúdo, da data e do local das actividades declaradas, devendo a respectiva pessoa colectiva comunicar e indicar os motivos à CAEAL até à antevéspera do dia da organização da actividade (artigo 75.º C n.º 3) mas uma pessoa singular, uma pessoa física, um candidato à AL por exemplo, já não o possa fazer? (Violação grosseira do princípio de igualdade constante no artigo 25.º da LB).
Estas normas da proposta de lei, para as quais remeti, violam sem margens para dúvidas os artigos 4.º, 11.º, 25.º, 26.º, 27.º e 40.º da Lei Básica (e no PIDCP, artigos 19.º, 21.º, 25.º, e 26.º, entre outros). Pelo menos. Os direitos e liberdades fundamentais de eleger e ser eleito, de expressão, de reunião, de manifestação, de imprensa ficam feridos gravemente mesmo mortalmente se esta lei vier a ser aprovada como está. São limitações sem limite ou critério e são aniquilações de direitos fundamentais que a nossa Lei Básica não prevê e não permite.
8. Sr. Presidente e Caros Colegas, estas alterações e distorções do regime eleitoral se forem avante, representam duas coisas gravíssimas:
1) Uma violação flagrante e em massa da Lei Básica; e,
2) Uma administrativização de um processo político eleitoral que se pretende livre, diferente, dialogador, e espontâneo. Como acontece em qualquer parte do mundo civilizado. Nem nas eleições para um clube de futebol ou para uma associação cívica são assim controladas e falhas de caracter genuíno.
9. Mas esta proposta de lei vai mais longe na sua falta de respeito pelo Lei Básica, pela separação de poderes entre o Governo e a AL por princípios estruturantes da nossa ordem jurídica. Vem esta proposta de lei fazer à “medida do alfaiate” uma parte das incompatibilidades que “O deputado não pode, enquanto exercer o seu mandato, ser titular dos seguintes cargos ou lugares: Membro de parlamento ou assembleia legislativa, de âmbito federal, nacional, regional ou municipal de Estado estrangeiro; Membro de governo ou trabalhador da administração pública de âmbito federal, nacional regional ou municipal de Estado estrangeiro.”
Ora bem, esta norma vingativa de incompatibilidades, repito, e não de inelegibilidades está a invadir uma área sagrada de reserva do Estatuto de Deputado.
Não pode ser proposta pelo Governo. Só pode ser aprovada por nós. E com a nossa iniciativa. Lembro ao Sr. Presidente e colegas as mais recentes iniciativas legislativas nomeadamente na Lei n.º 11/2008 “Alteração à Lei n.º 3/2001 Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa” o Executivo de então também quis mexer em matéria do Estatuto do Deputado e foi obrigado a retirar essa norma que mais tarde foi elaborada por iniciativa de deputados exclusivamente. (Vide Parecer n.º 5/III/2008 da 1.ª Comissão.
Sr. Presidente, Caros Colegas, em 2008 houve uma tentativa de intervenção invasiva e desrespeitadora da reserva dos deputados em matéria do seu Estatuto, e da autonomia deste hemiciclo, foi combatida e foi vencida, tendo sido recusada. Essa iniciativa constante da proposta de lei eleitoral teve de ser retirada. Aqui, passa-se o mesmo. Esta norma da proposta de lei tem que ser impreterivelmente retirada. Sob pena de violação da Lei Básica e de demonstração de profundo desrespeito por esta Assembleia e pelos seus deputados.
10. Mas há mais outras normas que me suscitam muitas e muitas dúvidas quanto à sua conformação com a Lei Básica quanto à sua justiça, ou adequação à realidade de Macau. Por exemplo, as relativas às instruções vinculativas. Destas instruções e do seu suso e possível abuso de muitos direitos fundamentais, várias normas da Lei Básica poderão mesmo ser violados.
11. Se a proposta de lei for aprovada com estes gritantes entorses, violações e desconformidades, será um dia de luto na RAEM. E se forem mesmo aprovadas e se continuar a verificar-se o crescente aumento da actividade policial de controlo musculado do exercício de vários direitos e liberdade fundamentais como a reunião e manifestação, e até de petição como recentemente aqui às nossas portas se passou, iremos ter uma campanha e um processo eleitoral transfigurado, impuro, amordaçado, ilegítimo e, talvez mesmo, assolado por constantes interrupções, quebras, restrições abusivas e muitas visitas forcadas às instalações policiais.
Como diz e muito bem o especialista da Lei Básica Prof. Ieong Wan Chong, a Lei Básica no artigo 26.º concede um “direito político fundamental”: o direito de eleger e de ser eleito e como forma de “participarem directamente na gestão dos assuntos sociais.”
12. Sr. Presidente e Caros Colegas, vamos respeitar este direito político fundamental. Vamos comprovar o nosso respeito pela Lei Básica. Por isso, imploro-vos que não aprovem a proposta de lei tal como está e cumpramos o nosso solene dever de fidelidade à Lei Básica tal como juramos, nos termos do artigo 101.º da Lei Básica.
O Deputado da Assembleia Legislativa da Região Administrativa Especial de Macau aos 09 Agosto de 2016.
José Pereira Coutinho