“Houve escolha nos empresários a levar a julgamento”
Ponto Final 20 Jan 2011
É o que pensa João Miguel Barros, advogado de Pedro Chiang. E foi uma das ideias fortes das suas alegações finais. O quinto julgamento do processo Ao Man Long está quase a chegar ao fim. Ontem, o dia foi longo no Tribunal Judicial de Base.
Isabel Castro
Foi um dia longo e um dia difícil para o sistema – ou os sistemas, se atendermos a que as críticas foram não só dirigidas aos responsáveis pela investigação criminal, mas também aos que têm por missão, talvez mais do que todos os outros, respeitar os princípios do Estado de direito e a separação de poderes. Mas já lá vamos.
Ao final de quase um ano do início formal do terceiro julgamento conexo ao processo Ao Man Long – que junta 13 arguidos acusados de crimes de corrupção activa e branqueamento de capitais – deu-se ontem entrada numa nova fase: as alegações finais.
Tiveram ontem oportunidade de expor conclusões e argumentos o Ministério Público, e os advogados de Pedro Chiang e dos empresários responsáveis pela construção do Estádio de Macau. João Miguel Barros e Leonel Alves são dois pesos-pesados do direito local, num julgamento que junta outros nomes de destaque da advocacia de Macau – a sessão de ontem era aguardada com alguma expectativa, atendendo às muitas questões processuais que foram sendo levantadas durante as mais de cem sessões de audiência realizadas no Tribunal Judicial de Base.
As expectativas não terão sido defraudadas: os dois causídicos que ontem intervieram fizeram-no de forma forte e não faltaram críticas ao modo como o processo Ao Man Long foi conduzido. Neste particular, João Miguel Barros destacou-se pela assertividade das suas alegações, que ocuparam grande parte da tarde de ontem.
O advogado de Pedro Chiang começou a sua intervenção com críticas nada metafóricas ao Ministério Público (MP) e ao Comissariado contra a Corrupção (CCAC), ao referir que o arguido iniciou o julgamento “assassinado no seu carácter por uma campanha terrível que lhe foi promovida na opinião pública”. A promoção desta campanha que teve Pedro Chiang entre os visados, continuou João Miguel Barros, deve-se ao CCAC – recorde-se que o advogado apresentou, há já alguns anos, queixas-crime ao MP sobre o que entende ser a violação do segredo de justiça, mas que não foram até agora objecto de qualquer decisão.
Sobre o organismo a quem compete acusar, Barros teve mais para dizer – disse o que, até à data, se comenta à boca pequena, mas que até ontem não tinha sido ainda verbalizado num espaço público: do mega-escândalo Ao Man Long só fazem alguns parte. “O Ministério Público escolheu quem quis, ou quem considerou ser social e politicamente mais fraco, para acusar e perseguir judicialmente”, atirou o defensor, que não deixou a afirmação no ar. Recordando que as testemunhas do CCAC explicaram em tribunal que as investigações tiveram início a partir dos “cadernos da amizade” (blocos onde o ex-secretário para os Transportes e Obras Públicas anotava detalhadamente os seus afazeres), o advogado afirmou que nos blocos de Ao Man Long “estão referidos os nomes de quase toda a gente no mundo da construção civil de Macau”. Como o CCAC já disse que as investigações estão concluídas – os empresários já julgados e condenados não chegam a uma mão cheia –, João Miguel Barros constatou que nem todos aqueles que estão referenciados foram alvo de investigação, observação que o levou a concluir que “houve escolha nos empresários a levar a julgamento”. Pedro Chiang faz parte do lote dos “escolhidos”.
O que dizem os mestres
Para o advogado, que admitiu nunca ter visto nada como o corrente processo em quase 30 anos de profissão, o caso em que Chiang é arguido é, de certa forma, “um case study”. Barros explicou porquê – e as razões são de ordem técnica. O advogado fez referência a uma série de questões que se colocaram ao longo do último ano, que vão do modo como o seu cliente foi notificado ao facto de, segundo contou, ter sido impedido pelo Ministério Público de consultar os autos após a notificação da acusação. Entrou, depois, numa questão que, não sendo nova, assume uma relevância que vai além da situação de Pedro Chiang: a nulidade do meio de obtenção de prova.
Chegados a este ponto, convém referir que João Miguel Barros anexou ontem ao processo vários pareceres de juristas portugueses consagrados. Um deles foi elaborado por Costa Andrade, da Universidade de Coimbra, e versa precisamente sobre a forma como o CCAC apreendeu o material que serviu de base a todo o processo Ao Man Long – não só à acusação que resultou na condenação a 28 anos e meio de prisão do ex-secretário, como também aos processos conexos.
Recorde-se que o MP construiu a sua fundamentação em relação à presumível culpabilidade dos arguidos tendo como ponto de partida as agendas, blocos de notas e documentação apreendidas na residência onde vivia Ao Man Long. Acontece que, ao contrário do que dispõe o Código de Processo Penal de Macau, o ex-secretário não estava presente nem se fez representar por pessoa de confiança aquando das buscas – o CCAC abriu a porta da casa do ex-secretário com uma cópia que lhe foi facultada pelo gabinete do Chefe do Executivo e, recordou ontem Barros, “o auto da busca não foi elaborado no local buscado”. A prova foi enfiada em sacos e levada para as instalações do comissariado.
O advogado levantou a questão junto do Tribunal de Segunda Instância (TSI) por via de um recurso interposto – mas o TSI acabou por não decidir sobre a questão. Ontem, o defensor de Chiang contrariou a interpretação jurídica que o MP faz sobre a matéria (a acusação não detecta qualquer ilegalidade no procedimento do CCAC), recorrendo ao conceito de domicílio que Costa Andrade redige no seu parecer. Tanto CCAC como MP entendem que a residência onde vivia Ao não era a sua verdadeira casa, tendo-se escudado no facto de o imóvel pertencer ao Governo. O professor catedrático de Coimbra não concorda e subscreve a teoria do arguido: residência é o local onde se vive – e até pode ser um quarto de hotel, que não se perde por isso o direito que o domicílio implica.
Se o meio de obtenção da prova é nulo, está-se perante uma proibição de valoração da mesma – ou seja, tudo aquilo que foi apreendido deixa de ter qualquer validade. Costa Andrade explica que “as provas não podem ser usadas nos processos em curso” – e isto acontece “independentemente do que tenha acontecido nas decisões já transitadas em julgado”. Tal significa que, a haver um entendimento diferente daquele que tem sido feito em torno desta questão, não haverá repercussões para os arguidos já julgados e a cumprir pena. Outro académico de renome do direito português, Figueiredo Dias, subscreve a teoria de que as buscas na residência de Ao Man Long “estão feridas de insanável ilegalidade”.
Males da Administração
Se o colectivo presidido por Mário Silvestre for do mesmo entendimento, todos os restantes argumentos apresentados ontem por João Miguel Barros para pedir a absolvição do seu cliente serão praticamente desnecessários – a prova cai por terra. Mas como é hábito nestes momentos processuais, os advogados discutem todas as possibilidades – e assim fez o advogado de Chiang, que lembrou os diferentes tipos de delito de que vai acusado o empresário da construção civil (corrupção activa para acto lícito e ilícito, branqueamento de capitais e abuso de poder) para tentar rebater a lógica da acusação.
Barros deu vários exemplos concretos, mas assentou as suas alegações em questões de direito – mais uma vez, com o apoio de pareceres de outros juristas, que vão ao encontro do que tem vindo a defender. Sublinhando, por diversas vezes, entender que não foi feita prova em sede de audiência dos crimes que o MP considera terem sido praticados, o advogado fez uma caracterização do que foi, na sua análise, a lógica da acusação – “presunções de presunções”. Para o advogado, o Ministério Público limitou-se a presumir que os registos nos cadernos de Ao Man Long acerca de encontros com Pedro Chiang são sinónimo de que esses encontros se realizaram. E esta “presunção” leva a uma outra: o facto desses encontros se terem realizado significa, para a acusação, que o empresário entregou dinheiro ao ex-secretário em troca de favorecimentos na agilização de procedimentos junto das Obras Públicas e na troca de terrenos. “Os registos nos cadernos não correspondem sequer às quantias levantadas por Pedro Chiang”, vincou o defensor.
“As testemunhas do CCAC foram intencionais na forma como lançaram sombras”, disse também. “As testemunhas do CCAC fizeram um mau serviço à justiça”, prosseguiu, sublinhando ainda que do processo constam documentos anónimos que algumas testemunhas presumem ser de Pedro Chiang – “mas ninguém confirma, pelo que, sendo anónimos, não deviam sequer integrar o processo”, sustentou.
Quase a terminar mais de duas horas de alegações, João Miguel Barros recordou o que foi dito em sede de audiência por um dos empresários do Estádio de Macau acerca de Ao Man Long, para falar na “extorsão, coacção e chantagem” a que estiveram sujeitos, na sua leitura, os empresários que cederam à vontade do ex-secretário.
“Quem alguma vez denunciou criminalmente um secretário?”, lançou. “A estrutura social de Macau é, neste aspecto, uma armadilha social e é perversa.” E isto porque existe uma “só pirâmide, com os dirigentes no topo e toda a gente distribuída até à base”. Para Barros, “quem não se ajustar às orientações públicas e às vontades declaradas ou ocultas de quem está no topo não tem condições para se manter inserido nesta pirâmide” – vive nas “margens ou à parte”. Foi assim durante a Administração portuguesa, apontou, e depois da RAEM também, com maior “evidência até à prisão de Ao Man Long”. E “de algum modo ainda continua a ser, agora assente noutros factores, como o medo”. Pedro Chiang “não quis viver nas margens”, rematou Barros, para quem o arguido foi vítima de Ao Man Long e das suas exigências “impróprias”, mas também de um sistema administrativo onde não falta “a incompetência, a irresponsabilidade funcional, o desleixo e muito desrespeito pelos administrados”.
O que Chui fez ao não deixar Ho falar
Foi um dos factos marcantes da recta final deste julgamento: Chui Sai On informou o tribunal, já durante o corrente mês, que Edmund Ho não pode depor em tribunal no âmbito do processo Ao Man Long. O ex-chefe do Executivo tinha sido arrolado testemunha por Pedro Chiang; ontem, o defensor do arguido lamentou a decisão de Chui e o facto de o tribunal se ter conformado com ela. Também Leonel Alves mostrou pesar por Edmund Ho não ter comparecido em tribunal.
Comecemos por João Miguel Barros – o advogado não recorreu da posição do tribunal perante o ofício enviado por Chui Sai On, até porque uma “testemunha hostil não serve os fins da justiça”, mas a opção da defesa de “nada fazer” não significa que “não se extraiam ilações” do despacho do líder do Governo.
Barros estranhou o momento em que surgiu o ofício de proibição de prestação de testemunho (uma espécie de aclaração feita por iniciativa de Chui), perguntou “a quem é que aproveita este despacho” e deixou outra interrogação: “Que entraves se querem colocar a que o Tribunal apure a verdade, em toda a sua extensão?”.
Para o advogado, mais do que a “ilegalidade” do despacho de Chui Sai On (é a primeira vez que um líder do Governo da RAEM proíbe um cidadão de depor em tribunal), que é um “caso de polícia administrativa”, importa pensar nas consequências do acto inédito do Chefe do Executivo: “Este despacho pode vir a constituir um gravíssimo precedente na conformação dos princípios da RAEM à Lei Básica”. E mais: “Permite ser entendido como uma tentativa de intromissão no poder judicial e na independência dos tribunais e dos juízes”.
João Miguel Barros disse ainda que o ofício de Chui “envergonha a autonomia do sistema judicial” e pode “afectar o princípio da separação de poderes”. E a terminar a parte das alegações dedicada a este nunca antes visto episódio, o defensor fez referência ao que considera ser “uma conspiração de silêncio acerca de certas opções políticas adoptadas e seguidas” pelo governo de Edmund Ho. Recorde-se que o ex-Chefe do Executivo não se pronunciou sobre o caso Ao Man Long: enquanto esteve em funções, disse não querer influenciar os processos a correr em tribunal; já com Chui no poder, foi por este dispensado de comparecer em sede de audiência.
Ontem, Edmund Ho foi chamado à colação também por Leonel Alves, num outro contexto: o advogado (e também deputado) lamentou que o ex-líder não tenha ido prestar esclarecimentos a tribunal. “Como é pena também que Ao Man Long não tenha vindo”, aditou sobre o ex-secretário, que se escusou com base no facto de a sua mulher ser arguida no processo. “Não terá havido diálogo entre Edmund Ho e Ao Man Long sobre os candidatos da lista provisória [no concurso público para a empreitada do Estádio de Macau]?”, lançou o defensor dos construtores do recinto desportivo, acusados de corrupção. “Era normal que o ex-secretário tivesse tido uma reunião para falar desta questão, dados os elevados montantes da obra. No caderno panalpina [um dos “cadernos da amizade”] constava o estádio na coluna de assuntos que Ao tinha para falar com o Chefe do Executivo”, relatou. O Ministério Público entende que os empresários defendidos por Alves subornaram o ex-secretário para assegurarem a adjudicação da empreitada, sendo que o advogado tentou ontem contestar essa tese (ver texto na página 9). I.C.